quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

NÃO AJA COMO A IGREJA MEDIEVAL

O ESPECIALISTA SUIÇO DIDIER MARLIER PROPÕE O FIM DA CEGUEIRA DAS EMPRESAS E NOVAS MANEIRAS DE ENCARAR ESTRATÉGIA, ORGANIZAÇÃO E LIDERANÇA.

No século 15, a Igreja Católica dominava o tabuleiro de xadrez militar, econômico e político europeu: tinha forte influência na escolha dos reis, plena autoridade no mundo do ensino e impedia toda e qualquer reflexão crítica sobre a religião – a própria língua latina era um entrave a isso. Assim, ela não viu chegar o obscuro artesão alemão que acabava de inventar a prensa mecânica.
O resto da história você conhece. A Bíblia publicada em alemão se distribuiu em alta velocidade e, em 50 anos, 20 milhões de livros de temas variados saíram em idiomas diversos. As pessoas, até então analfabetas, leram, instruíram-se, ganharam espírito crítico. A caixa de Pandora se abriu e a Igreja ficou para trás.
Passaram-se mais de cinco séculos e meio, porém muitas empresas de hoje estão reagindo diante da emergência da “Open Source Economy”, a economia de código aberto, exatamente como a Igreja medieval diante da prensa de Gutenberg: não viram o fenômeno surgir, tentam minimizá-lo na mídia e impedi-los nos tribunais, e provavelmente, ficarão para trás. A indústria fonográfica, em sua cegueira estratégica e recusa a entender o que os clientes queriam, é um pequeno exemplo do que está por vir; muitos setores passarão por reformulações radicais.
Se a ruptura é o que acontecerá com os mal preparados, surfará nessa nova onda da economia quem desafiar suas maneiras de encarar estratégia, organização e liderança.

DA ESTRATÉGIA AO “ESTRATEGIZAR”

Estão contados os dias em que estratégia se elabora em um momento predeterminado, do qual só alguns executivos seniores participam. Sai de cena o substantivo “estratégia” e entra o verbo “estrategizar”, conceito do especialista belga Nick van Heck que designa um processo permanente de reflexão, exploração e inovação nas empresas. “Estrategizar” abrange três iniciativas:

1.     Permitir a apropriação do modelo de negócio e do contexto pelo maior número possível de funcionários.
Até há pouco tempo achava-se que “a estratégia era secreta demais para ser compartilhada com os funcionários”, como o diretor de um banco holandês me disse recentemente, porém hoje é vital engajar o máximo de pessoas nela. Não é o sigilo que faz uma estratégia derrubar os adversários, e sim sua implementação eficaz.

2.     Capacitar os funcionários a “escanear o entorno”.
Você pode criar uma ruptura ou ser vítima dela – o que prefere? Não parece, mas trata-se de uma questão de escolha, que passa por compartilhar informações e decisões. É simples: da mesma forma que nosso cérebro “consciente” é capaz de processar apenas 4º dos 11 milhões de bits de informação que recebe do meio ambiente por segundo, a direção executiva só consegue monitorar muito pouco das mudanças frenéticas que ocorrem ao seu redor. Então, os líderes precisam de toda sua equipe para fazer esse trabalho, assim como nosso cérebro necessita de todas as células do corpo, que ele “treinou e alinhou” de modo permanente para que entendessem seu propósito (manter-nos vivos e em boa saúde) e soubessem dar o alerta diante de um perigo potencial ou de uma oportunidade de prazer. Os líderes têm de alinhar seus funcionários em torno do propósito superior da empresa, capacitá-los e prepara-los para que deem sinais de alerta cedo.

3.     Identificar e desafiar ortodoxias
O maior freio à inovação está justamente nesse cérebro inconsciente que armazena, por segundo, 10.999.960 bits de informação que não são absorvidos pelo cérebro consciente – e esses “sedimentos” inconscientes podem ser poderosos. O poder vem de uma comprovação do biólogo chileno Francisco Varela: confrontada com uma situação inédita, uma pessoa procura 80% de suas ideias no cérebro inconsciente. Isso sugere que o ser humano é extremamente conservador na hora de ser criativo diante de situações novas, que exigem pensar “fora da caixa”, algo que o ajudou durante sua evolução. Identificar esses reflexos e autocensuras é fundamental para quem quer progredir e inovar na economia aberta.

DA ORGANIZAÇÃO PIRAMIDAL À REDE ORGÂNICA

Sou fascinado pela história da conquista dos impérios maia e asteca pelos espanhóis. Apesar de estes estarem em número bem inferior ao daqueles, rapidamente identificaram o sistema de governança, prenderam o líder, fecharam as vias de comunicação para as capitais e, em pouco tempo, destruíram civilizações milenares, como mostrou Rod Beckström em seu livro Quem está no comando? [ed. Campus/Elsevier; veja HSM Management nº 67, página 114]. Tempos depois, os espanhóis tentaram repetir a mesma estratégia com os apaches norte-americanos, mas foi um fracasso total, porque esses índios não tinham o mesmo conceito de chefe e capital, e muito menos queriam se engajar em guerra aberta com os soldados europeus, preferindo a guerrilha. Os conquistadores nunca conseguiram vencer os nativos.
A organização piramidal remete a um contexto simples e complicado ao mesmo tempo: o chefe analisa a situação baseado em sua experiência, dá as ordens e controla os soldados que as executam. Em um mundo complexo e caótico, esse tipo de organização é, além de totalmente ineficiente, perigoso. Só uma rede orgânica e auto-organizada, tal como o corpo humano, pode responder aos desafios. Ela tem três características:

  1. Forte senso de propósito, compartilhado entre os membros do grupo.
Voltando ao paralelo com o corpo humano, o senso de propósito compartilhado por todas as células é nos manter vivo e em boa saúde.

  1. Um sistema de feedback permanente.
Esse sistema indica a cada integrante como ele está posicionado e como apoia o propósito maior – no corpo humano, o feedback está em todos os sintomas que nos dão informações sobre nossa saúde.

  1. Alta conectividade entre os integrantes do grupo para garantir fluidez na liderança.
O leitor já reparou como, no corpo humano, nenhum órgão é absoluto? Nem o cérebro. Cada um toma a liderança dependendo das circunstâncias – os líderes se revezam.

DA SUPERIORIDADE À CONFIANÇA

Além do impacto direto sobre a maneira de criar uma estratégia e a forma da organização, a economia aberta também exige que nosso estilo de liderança evolua. Muitos devem lembrar-se da caminhada cega, jogo que fazia sucesso em treinamentos corporativos: as pessoas andavam de olhos vendados por um percurso de obstáculos, lideradas por alguém que podia ver e devia dirigi-las sem tocar nelas. Liderar e ser liderado em um mundo caótico e em mudança rápida dá a mesma sensação, e nessas condições uma palavra é chave:  confiança. Para construir e manter essa confiança, muitas vezes perdida, o líder da nova economia encontra apoio em três alavancas:

  1. Reduzir a distância do poder.
Carmen Migueles e Marco Tulio Zanini, dois grandes professores e consultores brasileiros, mostraram como a distância do poder cria falta de confiança e necessidade de controle e de procedimentos burocráticos, o que freia as ações e reações dentro da empresa por meio de medo, conflito e politicagem. A construção da confiança exige que se reduza a distância entre líderes e liderados. Significa o fim da ideia de que senioridade é superioridade.

  1. Abraçar a autenticidade.
O ser humano tem uma capacidade, que vem do reino animal, de rapidamente sentir a falta de autenticidade no outro. Trata-se de um instinto que nos ajudou muito a sobreviver ao longo da história. Ninguém seguirá e menos ainda confiará seu destino e o da sua empresa a um líder que padece de falta de autenticidade – e não adianta tentar forjar isso.

  1. Prover feedback e saber encarar o conflito.
Esse, permita-me dizer, é um dos pilares mais difíceis de exercitar na cultura brasileira, que conheço cada vez mais. Sem um retorno sincero, sem a coragem de abordar discussões difíceis e delicadas, nenhum liderado acreditará no seu líder. E atravessar o Mar Vermelho dos mutantes mercados atuais requer uma sólida dose de fé no líder.

E O BRASIL?

O autor irlandês George Bernard Shaw já dizia: “As pessoas sempre atribuem às circunstâncias a culpa por serem quem são. Eu não acredito em circunstâncias; os indivíduos de sucesso são aqueles que saem e procuram as condições que desejam; e, se não as encontram, criam-nas”. Se esta deve ser realmente a vez do Brasil, é tempo de tomar as rédeas das novas circunstâncias.


O suíço Didier Marlier é autor de Engaging leadership: three agendas for sustaining achivement (ed. Palgrave Macmillan), consultor de empresas, entre as quais Rhodia, Lego e Nokia, e professor. Casado com uma brasileira, fala português. Lidera a rede de consultores EnablersNetwork.com, que tem escritório no Brasil (em São Paulo).


*Publicado na Revista HSMManagement nº 90 – Janeiro-Fevereiro 2012.






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